Diariamente, no decorrer da sua atividade, a rede de farmácias gera e recolhe um grande volume de dados que refletem as interações que têm com a população, os seus comportamentos e resultados em saúde. As farmácias constituem, portanto, um contexto importante de recolha de dados de mundo real (real-world data – RWD) que, em oposição aos dados recolhidos em ambiente controlado de ensaio clínico (randomized controled trial – RCT), permitem a geração de evidência científica sobre os benefícios e riscos dos medicamentos (e outras tecnologias), no contexto da prática clínica, i.e., evidência de mundo real (Real-world evidente – RWE). No fundo, a evidência de mundo real permite entender como as características e comportamentos da pessoa afetam os resultados de saúde, o que ajuda a prever a progressão de uma doença e a resposta da pessoa a uma tecnologia de saúde.1,2
Alguns exemplos de RWD no contexto da farmácia podem ser: dados de sell-out de bens (medicamentos e outros produtos de saúde) ou serviços de saúde, registos nas fichas de utente, resultados de determinações de parâmetros bioquímicos (fontes secundárias), ou questionários desenhados especificamente para o efeito de uma determinada investigação (dados primários). Estes dados são, posteriormente, analisados por meio de diferentes desenhos de estudo, nomeadamente, observacionais (como os estudos de coorte prospetivos e retrospetivos, estudos de caso-controle), mas também permitem a realização de ensaios clínicos pragmáticos.1,3
Inicialmente, a RWE começou por ser utilizada para efeitos de farmacovigilância em estudos pós-comercialização. Contudo, nos anos mais recentes, percebeu-se que, além da segurança, a RWE permitia complementar lacunas de conhecimento, não só em outros estágios do ciclo de aprovação do medicamento, como em outras áreas da prestação de cuidados de saúde. Estudos de RWE têm sido usados para explorar diferentes aspetos da saúde e da doença, como epidemiologia, carga da doença, padrões de utilização de medicamentos, resultados em saúde, resultados de tratamentos a longo prazo e patient-reported outcomes (PROs) – como funcionalidade, qualidade de vida e adesão à terapêutica – e patient-reported experience (PREs) – como satisfação, estigma, etc. Este tipo de estudos pode igualmente fornecer informações valiosas sobre os aspetos económicos de uma tecnologia de saúde e complementar a evidência recolhida em ensaios clínicos, estabelecendo o seu perfil de efetividade em populações mais diversas (com multimorbilidade, polimedicação, por exemplo) ou minoritárias. A informação recolhida sobre a utilização de tecnologias de saúde, nomeadamente medicamentos, em mundo real, pode ainda contribuir para a descoberta e aprovação de novas indicações terapêuticas dos fármacos. Nas etapas iniciais do desenvolvimento de medicamentos, pode resultar no encurtamento da duração dos ensaios e em diminuição de custos.1,3
Por este motivo, o interesse na utilização de RWE, assim como a sua aceitação para fins regulamentares, tem crescido junto dos diversos intervenientes no sistema – médicos e outros profissionais de saúde, empresas farmacêuticas, pagadores, reguladores e pessoas com doença. Ao nível da prática farmacêutica, os dados recolhidos podem ajudar os farmacêuticos a entender melhor os fatores que influenciam o uso de medicamentos e a adesão no mundo real e otimizar a intervenção das farmácias. Por exemplo, a RWE pode ser usada para identificar barreiras de adesão à medicação, como questões de custo ou acesso, e para desenvolver estratégias para lidar com essas barreiras, gerando valor acrescentado para as farmácias e para as pessoas.1,3,4
Contudo, reconhecem-se vários desafios na utilização de RWD para produzir evidência científica, particularmente no que diz respeito à sua qualidade e validade. O valor da evidência gerada depende do planeamento, sistematização, exaustividade e qualidade do processo de recolha dos dados, do envolvimento com outras entidades aplicáveis (como pagadores e/ou entidades reguladoras), do acesso a tecnologia e interoperabilidade dos sistemas.1,5 Em função disto, várias autoridades reguladoras criaram diretrizes e ferramentas para a utilização eficiente e robusta de RWE. A Agência Europeia de Medicamentos (EMA) e a Rede Europeia de Regulamentação de Medicamentos estabeleceram um centro de coordenação para gerar evidência de qualidade, e em tempo oportuno, sobre o uso, segurança e eficácia de medicamentos para uso humano, incluindo vacinas, utilizando bases de dados de saúde do mundo real em toda a UE – o DARWIN EU® (Data Analysis and Real World Interrogation Network).6,7
Pela sua proximidade à comunidade e pela relação de confiança existente, torna-se fundamental a promoção das farmácias enquanto locais geradores de dados e evidência em mundo real, que possam caracterizar a jornada terapêutica, demonstrar a segurança e efetividade em contextos complexos, ajudar a definir políticas em saúde ou suportar a aprovação de introdução no mercado de novos medicamentos ou revisão dos seu modelos de comercialização, através de dados observacionais no mundo real.8
Para tal, é indispensável que os registos se façam segundo elevados padrões de qualidade e os standards internacionais, visando a integração futura nas diversas iniciativas internacionais de geração de evidência de mundo real.
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