A terapêutica farmacológica é a intervenção mais frequentemente praticada nos sistemas de saúde a nível mundial.1 Os medicamentos têm promovido, desde a sua introdução, a eficiência dos sistemas de saúde, por se revelarem uma tecnologia custo-efetiva com efeitos positivos sem precedentes, contribuindo para a redução da carga da doença, da mortalidade e, para a melhoria da qualidade de vida.2
No entanto, apesar dos seus benefícios, os medicamentos também podem causar danos e afetar a saúde e o bem-estar dos indivíduos. A administração incorreta ou a utilização não adequadamente monitorizada dos medicamentos acarretam elevado impacto para os sistemas de saúde.1 De acordo com a OCDE, cerca de uma em cada dez hospitalizações podem ser causadas por um evento relacionado com o medicamento e até uma em cada cinco pessoas hospitalizadas sofre de problemas relacionados com medicamentos durante a hospitalização.1
Estima-se que seja possível poupar, em todo o mundo, cerca de 370 mil milhões de euros em cuidados de saúde através da utilização otimizada do medicamento, o que corresponde a cerca de 8% da despesa mundial em Saúde, por ano.3 Assim, promover o uso responsável do medicamento deverá ser uma prioridade para fomentar a sustentabilidade do Sistema de Saúde, perspetivando ganhos em saúde e económicos para a sociedade em geral.2
Os enormes progressos alcançados nas últimas décadas têm permitido um aumento da esperança média de vida. A este aumento, associa-se um aumento da prevalência de doenças crónicas associadas ao envelhecimento e, consequentemente, um maior consumo de medicamentos. A presença de multimorbilidades é uma situação comum, afetando mais de um terço da população portuguesa.4 Tudo isto concorre para o aumento do número de pessoas polimedicadas, que apresentam maior risco de complicações e maior dificuldade na adesão aos regimes terapêuticos, estando mais vulneráveis à ocorrência de reações adversas e potenciais interações medicamentosas. O risco aumenta na medida da complexidade do regime terapêutico. A não adesão à terapêutica representa também um problema de saúde global.2,5
Os conhecimentos sobre o medicamento e farmacoterapia são centrais na formação dos farmacêuticos. Aliado à sua proximidade, nas farmácias comunitárias, e ao papel mediador da relação do utente com os seus medicamentos, este conhecimento técnico posiciona-os como os profissionais de saúde mais aptos para intervir como elemento agregador nas transições entre cuidados, em articulação com os restantes profissionais de saúde, no que respeita à utilização de medicamentos.6
Neste sentido, propõe-se o reforço do papel ativo do farmacêutico comunitário na revisão e reconciliação da terapêutica.
A revisão da terapêutica é um serviço estruturado através do qual toda a medicação da pessoa com doença é avaliada periódica e sistematicamente, e tem como objetivo otimizar a utilização do medicamento e melhorar os resultados em saúde.7 Por outro lado, a reconciliação da terapêutica é um processo que inclui a comparação entre a medicação atual e o regime terapêutico prévio da pessoa e deve ocorrer em cada momento da transição entre cuidados de saúde, em que a medicação é ajustada, tendo ainda em conta a automedicação.8
Estes serviços traduzem-se numa maior eficácia dos esquemas terapêuticos prescritos, na redução dos eventos adversos, numa maior segurança e, de forma global, em melhores resultados em saúde.
Os serviços disponibilizados pela farmácia comunitária deverão passar a ter uma abordagem holística e centrada na pessoa, e não apenas na sua condição, pretendendo-se que o acompanhamento prestado pelo farmacêutico seja continuado e não apenas limitado a uma determinada condição temporal da pessoa.2,4,9,10 De modo a implementar e suportar um processo de gestão da medicação ao longo da jornada do utente, é também necessário que exista o suporte dos processos de digitalização e que os registos eletrónicos dos utentes sejam acedidos, de forma transversal, pelos diferentes profissionais de saúde.2,6,10,11
Na Irlanda os benefícios de uma melhor comunicação e reconciliação de medicamentos no momento da alta – envolvendo médico, farmacêutico, utente e/ou cuidador –, têm sido comprovados em iniciativas locais desenvolvidas em hospitais: os erros são identificados e reduzidos de forma atempada, a medicação é analisada e reconciliada sempre que necessário e os danos para o utente são reduzidos, aumentando a segurança e fomentando a prática colaborativa entre profissionais.2
De uma perspetiva dos utentes, paralelamente aos benefícios clínicos, o processo de revisão da medicação pelo farmacêutico melhora os níveis de conhecimento sobre os tratamentos e proporciona-lhes uma oportunidade de abordar quaisquer preocupações sobre a medicação. Para os farmacêuticos, este processo cria a oportunidade de fornecer aos utentes a informação necessária sobre os seus medicamentos, de forma a promover a correta utilização e a redução de eventual desperdício associado à toma de medicamentos.2,4,6,10
O farmacêutico deve implementar medidas que promovam a segurança e a efetividade na utilização dos medicamentos, apoiando-se no conhecimento e domínio único sobre os medicamentos, e durante toda a jornada de cuidados. Para além dos benefícios diretos associados à implementação destas medidas, a evidência demonstra que processos de reconciliação e revisão da medicação geridos por farmacêuticos são processos custo-efetivos, no sentido de minimizar as reações adversas e interações medicamentosas, melhorando a segurança dos medicamentos e os outcomes clínicos.2,9
Em suma, a reconciliação e revisão da medicação, pelo farmacêutico, em contexto de farmácia comunitária, têm-se afigurado como exemplo de intervenção bem-sucedida e eficaz para a otimização dos resultados em saúde dos utentes, devendo este papel ativo do farmacêutico ser reforçado, particularmente, em processos de transição de cuidados.
1. Bienassis K de, Esmail L, Lopert R, et al. The economics of medication safety: Improving medication safety through collective, real-time learning. Paris: 2022. doi:10.1787/9a933261-en. 2. Ordem dos Farmacêuticos. Recomendações da Ordem dos Farmacêuticos para o Uso Responsável do Medicamento. 2016. 3. IMS Institute for Health Informatics. Advancing the Responsible Use of Medicines: Applying Levers for Change. Elsevier BV 2012. doi:10.2139/ssrn.2222541. 4. Quinaz Romana G, Kislaya I, Salvador MR, et al. Multimorbilidade em Portugal: Dados do Primeiro Inquérito Nacional de Saúde com Exame Físico. Acta Med Port 2019;32:30–7. doi:10.20344/amp.11227. 5. World Health Organization. The Pursuit of Responsible Use of Medicines: Sharing and Learning from Country Experiences. 2012. 6. Pharmaceutical Group of the European Union. Pharmacy 2030: A Vision for Community Pharmacy in Europe. Brussels: 2019. 7. Direção Nacional da Ordem dos Farmacêuticos. Orientações para a Revisão da Medicação. 2021. https://www.ordemfarmaceuticos.pt/fotos/editor2/2021/Documentos/ orm_of.pdf (accessed 12 Jul 2023). 8. Paula Iglésias-Ferreira. Consulta farmacêutica de revisão da medicação. Boletim do CIM - Revista da Ordem dos Farmacêuticos 2013;106:2–4. https://www.ordemfarmaceuticos.pt/pt/publicacoes/boletim-do-cim/boletim-do-cim-jan-mar-2013/?fbclid=IwAR20EhHfD7niW_JvYMH96lar2QFqM9IuRyTFE7YzfwmwdWqL0Ku_RTUXRWo. 9. The Pharmaceutical Society of Ireland (PSI). Future Pharmacy Practice in Ireland. Meeting Patients’ Needs. Dublin: 2016. 10. Mishriky J, Stupans I, Chan V. Expanding the role of Australian pharmacists in community pharmacies in chronic pain management - a narrative review. Pharm Pract (Granada) 2019;17:1410. doi:10.18549/PharmPract.2019.1.1410. 11. Ordem dos Farmacêuticos. Norma Geral sobre Preparação Individualizada da Medicação (PIM). 2018.